terça-feira, 2 de outubro de 2007

Será castigo dos deuses? Qual o objectivo desta mudança?


Durante séculos, lembrem-se que as sereias são imortais, fui uma sereia.
Linda e feliz, no ventre materno de onde toda a vida na terra emergiu.
O mar, minha casa mãe.
A única que conhecia.


Com as amigas passáva os dias folgando nas águas que a tudo nos proviam, pregando pequenos sustos, brincadeiras, sem malícia nem consequência aos navegadores e, mais tarde aos pescadores.

Aparecíamos tão depressa, quase sempre em noites de luar, que, estremunhados, acreditavam sonhar e não sermos reais.


Nas profundezas recolhíamos pedras, conchas e algas de belas cores com que nos enfeitávamos, escovávamos os cabelos e entrançávamo-los com as peças que tecíamos.

Com os novos navios e submarinos - que tememos porque as hélices nos sugam - perdemos o hábito de nos mostrarmos aos humanos. Pedeu a graça.

Daí a lenda da nossa não existência se ter reforçado e os "modernos" pensarem que os "antigos" efabulavam, nas noites de temporais ou nos seus sonos, em função dos seus medos.


Divertimo-nos entontecendo, inebriando, cegando e paralisando Ulisses e seus marinheiros, mas este acabou por ser mais esperto do que nós.

Está certo que esta "brincadeira" nos foi ordenada pelos deuses e não partiu de nós.
Mas dos jogos dos deuses nada entendemos.
Somos como crianças.
Sem maldade nem intenções escusas.
De poder ou outras. O p.ensmento dos deuses já é bem mais complexo e cheio de artimanhas

Um dia deixei de ver os azuis e os verdes das águas, deixei de ver as estrelas cintilando na abóbada celeste. Deixei de ver o que quer que fosse.

Só uma escuridão me envolvia e não sentia meu corpo.


Por natureza não somos atreitas à angústia ou depressão, e como seres imortais não medimos o tempo.
Deixei a vida correr no escuro que me rodeava, pulsando ao bater de um mui pequeno coração pois era diferente daquele que, ao longo dos séculos me habituara.

Um dia comecei a escavar, coisa estranha para sereia, e saí de dentro desta casca de árvore num corpo informe e feio que me fez lembrar alguns animais que por vezes via nos rochedos, mas só distantes semelhanças.
Não iguais e mais feia.

Senti fome e um cheiro me atraiu.
Deselegantemente lá fui caminhando, arrastando-me.
Não no mar, mas na terra, respirando sempre e só, ar.


Enfiei o frágil, débil e feio corpo que agora habito, nesta peça, e sorvi uma bebida doce e ao mesmo tempo amarga que ali estava e cujo cheiro me atraíra.

No branco da peça vidrada vi o meu agora abominável reflexo.
Estremeci.
De medo pela diferença, pelo isolamento de tudo e todos os que conhecia.
Do descoinhecido.
Um mundo que mal conheço e pior porque não sei o que sou agora e, mais, porque sou assim?


Castigo dos deuses ou preversa brincadeira?
Nas mãos deles somos meros joguetes de seu tédio e caprichos.

Vi humanos ao meu redor e se antes nunca os temera senti um arrepio correr por dentro de mim, porque por fora parece que tenho uma dura carapaça.

Mas sou tão pequena que até uma criança com um dedito de sua mão pode esmagar-me.

Como por natureza nem sabemos o que é a morte mas conheço-a, pois dela salvei muitos humanos em naufrágios.
A outros já não pude acudir e vi a morte feia de seus corpos esvaziados cuja carne se deteriorava e fedia servindo de alimento a peixes e vermes.
Mas nunca vi a morte de nenhuma sereia porque para nós não existe morte e vivemos pelos tempos fora enquanto na Terra houver Oceanos.


Ouvi uma infantil e humana voz dizer: "pai, olha uma barata!",enquanto com seu pequeno dedo , enorme e assustador agora, me indicava ao progenitor.
Fiquei então a saber que me chamava Barata.
Daí o nome que aqui vos apresento.
Mas foi tal o susto que fiquei virada de barriga para o ar a estrebuchar sem conseguir voltar a posição que me permitisse sair velozmente dali para fora.
Como se muito longe, derivado ao medo que sentia, ouvi a voz masculina dizer: "Manuela*, não faças mal ao bichinho!"
O "Bichinho" era eu,.
Entendi então ao que estava reduzida.

Pela primeira vez em séculos sinto medo. Sei o que é o medo.
Mas como não faz parte da nossa natureza decidi viver por aqui o melhor que puder e souber aguardando o desvendar deste mistério - porquê, eu sereia, de meu nome Inja, sou agora uma barata tonta esperneando sobre uma mesa, receando um pequeno e infantil dedo humano?

E assim decidi embarcar nesta aventura na esperança de perceber o objectivo desta drástica mudança e aproveitar para melhor vos conhecer a vós, humanas criaturas e ao animal que agora sou.


P.S - E do nome da menina e do do animal criei o meu: Manuela Barata.
Tonta porque creio que levei horas para deixar de espernaear de pernas para o ar....
Que vos não surpreendeeis por Barata ser e conseguir escrever.
Nós, sereias, somos telepatas e o nosso cérebro tem muitas outras capacidades ainda desconhecidas dos humanos, apesar de vocês também as terem em potencial.
Não são minhas curtas patas que escrevem, mas meu cérebro que dita os pensamentos ao computador.
Se alguém já sofreu uma transmutação, semelhante ou não, diga-me.
Ajude-me a entender o objectivo do que comigo se passa .

3 comentários:

Parvinha da Silva disse...

Texto complexo.
Vou reflectir.
Voltarei.

"Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe". (Oscar Wilde)

Sinto-te viva; desanimada, mas viva.

A.Mello-Alter disse...

E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.

A.Mello-Alter disse...

Ist se fores uma sereia do Tejo. TÁGIDE.